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Você fala como uma benção

  • Brunna Gabardo
  • 20 de out. de 2022
  • 3 min de leitura

Atualizado: 3 de nov. de 2022

Por Brunna Gabardo


É estranho ver por essas terras filhos sem mãe. A maternidade festeja na Primavera, afinal, essas mulheres são poliglotas. Traduzem amor para a juventude, para a velha idade e para forasteiros, aqueles que desejam ficar. “Sejam bem vindas!”, sorriu a mulher. Quem se deixa renascer na profundeza desses olhos cor-de-terra, enxerga-se criança de novo. Movem-se como glória, como luz. Nessas pupilas não há pavor, fome ou solidão. Um rosto sem lágrimas. No olho de Marlene não há espaço para amargura ou fraqueza. Ele toma o coração de quem escuta suas histórias nas mãos e o beija. É difícil desviar de seus olhos, atentos, que mostram o tempo todo brilho de ternura, mas nunca calados ou distantes. Não, eles falam e falam.

Foto: Sabrina Ramos

Marlene Meira, aos 60 anos, gargalha ao falar de suas bênçãos, feito canário alegre ao levantar voo. Aliás, ela sempre está indo de um lado para o outro, sem parar. O sol abraça sua pele de forma carinhosa e não se importa de sujar os pés nas ruas marcianas, cor-de-lava. Ela carrega o título de “mãe” com grandeza, como se fosse sua brincadeira favorita. Deus a tornou grande e valente, transformando seu corpo em um castelo para ser a morada de suas crianças. Além de seus quatro filhos, criou seus netos, os pequenos de suas patroas, os vizinhos e por isso é conhecida como “abençoada”. “Ninguém conhece a Marlene, mas todos conhecem a Abençoada”, explicou.


Algumas roupas estão no varal, em frente à sua casa, um fio estendido de janela a janela. As roupas não balançam com o vento, parecem fotografia, estáticas. As janelas amanhecem e anoitecem abertas. “Os anjos estão cuidando”, afirma com tranquilidade. Descansando em um copo de plástico, três flores na cor de lavanda em cima da geladeira guardam o lar. Em um canto, estão suas costuras, botões coloridos e a caixa de pesca de seu marido, em outro, está um rádio para cantar seus louvores. Quando abre a porta, deixa escapar resquícios de sentimentalismo. Há dez anos, a Primavera os adotou. “A primeira que existiu nesse lugar fui eu”, diz com orgulho. Seus filhos, um a um, instalaram-se ao seu redor.


Foto: Sabrina Ramos

Marlene chama quem estiver à sua volta de filho durante as conversas. Suas mãos repousam em seus braços e é possível sentir seu impulso de cuidar, sem constrangimento. Assim, compreende-se quem não deseja se afastar de seu carinho. As meninas barganham com suas mães para que possam ficar mais uma noite com ela: “Minha querida, vai com a sua mãezinha. Amanhã você está de volta com a vó Marlene”. Mas Marlene é apaixonada por sua caçula, Simone, de 35 anos. Com correntezas enfeitando suas bochechas, a filha mais nova se dirige à mãe: “Ela é meu espelho. Ela esteve ao meu lado o tempo todo. Me alimentou, me deu banho”, referindo-se ao seu acidente de moto, em 2017. “Ela voltou a ser criança. Chorava muito”, disse Marlene.



Por fora, Marlene mostra-se calma e esperançosa. Suas cicatrizes não se deixam refletir, nem mesmo suas dores. Ela não deixa desvendarem seus pensamentos. O sofrer é proibido no seu vocabulário? Ao ser questionada sobre sua infância, ela é levada para um lugar distante. Catarinense, evita dar detalhes sobre suas raízes, apenas mencionando a morte de sua mãe e sua criação. Sua educação ficou aos cuidados de suas tias e patroas, de casa em casa, com quem aprendeu a cozinhar, coser e cuidar. Assim, deixou o assunto para outro encontro, podendo-se concluir que, para ela, o terrível e a tristeza acontecem, mas devem ser esquecidos — ou pelo menos guardados na gaveta mais funda.



Foto: Sabrina Ramos

Mesmo assim, não há necessidade de perguntar se ela é feliz. “Aqui não tem lugar pra tristeza”, diz. Afinal, mães se alegram ao acompanharem seus miúdos atravessarem seus braços e irem além, ao verem eles desgrudando de seus seios e começarem a andar. O cuidado de Marlene com a vida é vista em suas crias. Os cabelos presos, a barriga cheia, as roupas limpas. Para esta mulher, amar não dói. Não há guerra ou perdição se puder amar os outros, e receber, de vez em quando, amor em troca.








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