As flores desabrocham na Primavera
- Isadora Deip
- 2 de nov. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 3 de nov. de 2022
Por Isadora Deip

Se a nossa existência imitasse o ano e fosse fragmentada em quatro estações, a juventude seria a primavera de nossas vidas. A semente germinada na infância resulta, na adolescência, em uma flor que desabrocha. E assim como a primavera traz consigo a esperança de novas colheitas, a mocidade é alimentada por expectativas, curiosidade e decisões.
Ao mesmo tempo, é uma fase permeada de incertezas. Uma era em que uma desilusão amorosa soa como o apocalipse, e pequenas fofocas ganham proporções catastróficas. Tudo é sentido à flor da pele.
Na comunidade Primavera, a juventude é composta por rostos distintos. Diferentes pedaços de um espelho quebrado, que reflete as peculiaridades de ser jovem em uma ocupação.
Aquela que é vitoriosa

Vitoria Gertrudes tem as sobrancelhas caídas e um sorriso tímido. Com 13 anos, seu olhar é sereno, mas transmite seriedade. Ela está sentada em um sofá de retalhos no lar de Vanessa Rodrigues, presidente da associação de moradores e líder da ocupação Nova Primavera. Parece sentir-se confortável ali.
Nas mãos, ela segura um kit com doces, que ganhou devido ao Dia das Crianças. Contudo, os dilemas que enfrenta e suas responsabilidades já não são mais infantis.
Vitoria não se recorda ao certo quando sua família mudou-se para a comunidade Primavera, mas lembra que foi antes da pandemia da Covid-19. Hoje, ela mora com a mãe, o pai, dois irmãos mais novos e três cachorros: DJ, Tóquio e Alvin.
O nascimento de um desses irmãos há cinco meses, inclusive, é mencionado por Vitoria como a melhor coisa que aconteceu em sua vida nos últimos tempos. É nítido o cuidado e a preocupação que ela tem com os pequenos. Até mesmo quando fala sobre sua própria rotina, ela inclui os irmãos:
“Eu acordo, vou para a escola, volto e levo meu irmão para a escola de novo. Aí ajudo minha mãe a limpar a casa, vou buscar meu irmão, volto e fico brincando na rua”, conta.
Nas horas de diversão, o programa favorito de Vitoria é jogar futebol na pracinha com alguns meninos e sua melhor amiga, Rihanna. Além da “pelada”, a garota se arrisca nas artes marciais e participa de aulas de Muay Thai na comunidade, todas as quintas-feiras.
Quando fala sobre Rihanna, a admiração nos olhos de Vitoria é visível. Ela afirma, sem hesitar, que a melhor amiga é a pessoa que mais a inspira. As duas mantêm uma conta no TikTok, onde postam vídeos que gravam juntas.
Quando escapa da realidade e mergulha na ficção, a garota gosta de assistir a filmes, séries e novelas. Enquanto sua primeira opção de seriado é La Casa de Papel, seu longa preferido é O Rei Leão, de 1994.
Valorizar suas origens e prezar por aqueles que estão ao seu lado. Ao mesmo tempo, devanear sobre o futuro e traçar novos planos. São estas algumas lições intrínsecas ao clássico da Disney, mas também valores que Vitoria cultiva na Primavera de sua vida.
Com ternura preenchendo o olhar, a menina fala sobre suas melhores lembranças na comunidade Primavera. “Tem muitas. As que mais me marcam são as festas que a Vanessa [líder da comunidade] faz, geralmente na Páscoa, no Ano Novo e no Natal. Ela chama um monte de gente, põe cama elástica…”, conta.
Dentre todas as comemorações, a preferida de Vitoria é a do velhinho barbudo, dos sinos e das velas. Para ela, o Natal é época de ver um sorriso brotar no rosto de um dos personagens mais importantes de sua vida: seu irmão. “Eu gosto de comemorar, mas ele só pensa em brinquedo!”.
Para o futuro, Vitoria almeja ser professora de Geografia, sua matéria favorita na escola. Ela sonha, ainda, em conhecer todas as cidades, estados e países que ela avista com tanta curiosidade nos mapas.
A menina quer alçar voo, mas seguir com os pés na Primavera. Se tiver filhos um dia, ela acredita que a comunidade seria um bom lugar para criar seus frutos, cultivar uma família e criar raízes.
Amável

Cruzando a rua principal da comunidade Primavera com mais duas amigas, está Amabilly Gabrielly. Usa maquiagem prateada e acessórios dourados, reluzentes. Quando sorri, suas maçãs do rosto se sobressaem, o que faz parecê-la mais nova do que de fato é.
Com 15 anos de idade, Amabilly passou mais da metade da sua vida morando na Primavera. Natural de Campina da Lagoa, no Centro-Oeste paranaense, ela se mudou para a ocupação curitibana há oito anos.
A jovem interrompeu seus estudos no sétimo ano do Ensino Fundamental. Nutria o sonho de ser professora, mas a vontade se esvaiu quando ficou responsável por cuidar de suas irmãs. “Agora eu já não quero mais, Deus me livre. Eu já fico louca com minhas duas irmãs, imagina com uma sala inteira! Ia ser internada no hospício, ‘mano’!”
Amabilly está na primavera de sua vida, mas já mora sozinha. Quando não está ocupada com os afazeres do lar, a adolescente gosta de fumar um “narga” na frente da pracinha e se aventurar em “rolês” fora da comunidade. Mas os programas dos finais de semana não são os mesmos sem a presença de sua vizinha, Marissol Guimarães.
“Eu acordo, tomo banho e limpo a casa. Aí eu saio pra chamar ela [Marissol], e ela já está arrumada, porque acorda mais cedo”, afirma Amabilly sobre sua rotina, trocando olhares de cumplicidade com Marissol.
Para aproveitar sua própria companhia, Amabilly gosta de assistir a filmes de terror e séries – sua preferida é Grey’s Anatomy. Seus momentos de introversão às vezes são acompanhados por músicas, dos gêneros funk, eletrônica e rap, principalmente.
Os anseios da jovem para o futuro consistem em construir uma casa e ter sucesso profissionalmente: “Um bom trabalho, porque senão não sai nem do lugar.”
O nome Amabilly tem origem no latim “Amabilis”, cujo significado é “amável, amorosa”. Sua identidade é quase um presságio de seu caráter. Fazendo jus ao nome, Amabilly parece ser carinhosa com aqueles que a rodeiam, mas o principal alvo deste sentimento é sua mãe. Ao falar sobre seus planos, a adolescente menciona a matriarca:
“Quero dar algumas coisas para a minha mãe, também”.
Quando conta que a mulher pretende se mudar para um bairro próximo à Primavera, as pupilas da jovem não disfarçam a emoção.
Apesar dos laços que estabeleceu na comunidade, Amabilly não pretende continuar morando na Primavera na vida adulta, tampouco deseja criar seus filhos ali. Ela diz que a infância e a adolescência na ocupação, por vezes, são complicadas, sobretudo para as meninas. “Não pode andar com ‘piazinho’ na rua que já fica mal falada”, explica, “Mas para o mal olhado, nós ‘tamo’ com o olho fechado”.
Maria do Sol

Marissol. Abreviação do nome espanhol María del Sol ("Maria do Sol") ou María de la Soledad ("Maria da Solidão"). É o nome da moça de 16 anos que, junto à Amabilly, desfila pelos caminhos primaveris.
Ela usa uma saia e um “top” cor-de-rosa choque, que deixa à mostra a flor de lótus tatuada em sua pele. Suas íris têm cores distintas: em um dos olhos, é azul da cor do mar. No outro, é escura e remete a uma jabuticaba.
Marissol Guimarães mora na comunidade há nove anos, mas o que queria mesmo era deixar a Primavera e ir atrás do verão. Seu sonho mais intenso, que perdura desde a infância, é se mudar para o Rio de Janeiro, em busca de mar e sol.
Para ela, a juventude na ocupação, por vezes, é complicada. “Já tem uma história aqui, todo mundo te conhece. Prefiro me mudar, mas aqui também é bom.
A gente sai da favela, mas a favela não sai da gente”, afirma.
Quando menina, também planejava ser advogada, mas parou de estudar no oitavo ano do Ensino Fundamental, quando viajou para Londrina, no Norte do Paraná.
Hoje, sua rotina divide-se entre os afazeres do lar e o cuidado dos sobrinhos. A jovem encontra nas redes sociais uma forma de se distrair e, ao mesmo tempo, se relacionar com amigos que moram fora da comunidade Primavera, usando principalmente o Instagram, Facebook e WhatsApp.
Marissol sente falta de ser criança e de ter os dias preenchidos por brincadeiras. “Brinquei bastante, toda coisa que você imaginar eu brinquei”, conta a adolescente, lembrando da infância como se recordasse de um sonho bom.
Aquela que une

Rebeca Costa vive uma transição entre as estações de sua vida. Aos 21 anos de idade, ela já não se identifica mais com os primeiros amores e as primeiras decepções típicas da meninice. Os “rolês” em frente ao campinho da Primavera ainda são embalados por boas conversas, mas agora a responsabilidade chama com mais frequência.
Seu nome vem do hebraico Ribhqah, que remete a “união”, “ligação” e “aquela que une”. Dentro da comunidade, Rebeca encontrou união e acolhimento na família que formou junto à sua esposa Diene e o filho de um ano, Mateus Eduardo. Ela conta que, na Primavera, em nenhum momento sofreu preconceito por ser uma mulher LGBTQIA+.
Natural de Londrina, Rebeca mudou-se para a ocupação há três anos. “A gente não ‘tá’ pagando aluguel, a luz e a água. Temos nossa casa aqui”, afirma a jovem, questionada sobre a melhor parte de morar na Primavera.
Ela possui Ensino Médio completo, concluído em Londrina. Seu último trabalho foi como babá, mas no momento está à procura de um novo emprego.
Quando a vida lhe dá brecha para o ócio, Rebeca aproveita para ouvir música, principalmente sertanejo, funk e “música de Deus”. Na rotina corrida que leva, o lazer é uma dádiva. “Gosto de descansar, porque eu sou dona de casa”, destaca.
Quando ouve as vozes potentes e as composições “sofridas” de suas maiores inspirações – Marília Mendonça e Maiara e Maraísa –, a imaginação de Rebeca vai longe e ela visualiza a si mesma em cima dos palcos. O sonho de se tornar uma cantora sertaneja ainda é tímido, ensaiado no chuveiro. A jovem nunca cantou para alguém da Primavera, além de sua esposa.
Além dos desejos para sua própria trajetória, Rebeca sonha com dias melhores para a comunidade. Para ela, uma reforma nas ruas da Primavera seria ótima para quem vive ali, já que as chuvas encharcam as vias com barro.
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