Sem risadinha
- Isadora Deip
- 2 de nov. de 2022
- 5 min de leitura
Por Isadora Deip
Foram necessários poucos minutos para o céu da Primavera perder a tonalidade laranja e se transformar em uma aquarela de azul, roxo e rosa. Era perceptível que, logo, o breu tomaria conta e as estrelas se dilatariam acima de nós.
Um céu típico da primavera “dava as caras” na Primavera.
Sentados na beira do campinho, moradores da comunidade dividiam uma Coca-Cola de dois litros. Inspirações e expirações ofegantes, já que se recuperavam de uma partida agitada de futebol.
Enquanto isso, debatiam os detalhes de uma luta do UFC que havia acontecido no dia anterior, 22 de outubro, disputada por Charles do Bronx e Islam Makhachev. Reviam suas apostas e julgavam as táticas dos lutadores. Falavam, falavam, e então falavam mais um pouco.

A mais entusiasmada do grupo, pude perceber de longe, era Sonelma Stoll, de 42 anos, conhecida pelos moradores como Chica. Com os cabelos presos em um rabo de cavalo apertado, ela era a única que degustava uma água com gás.
“Ela não sabe brincar!”, é o que a filha dela, Gabrielle do Nascimento, de 17 anos, tem a dizer sobre a mãe, fazendo referência ao espírito competitivo da matriarca. Mas a declaração de Gabrielle pode ter outra interpretação: Chica não encara a existência como uma mera jocosidade. Ela não veio ao mundo “a passeio” e não está na Terra (só) para brincadeiras.
Professora de Muay Thai na Primavera, Sonelma implementou o esporte na comunidade no primeiro semestre de 2022. Desde então, as aulas acontecem semanalmente, às 18 horas das quintas-feiras, na sede da associação de moradores. No início, a turma misturava crianças e adultos, mas apenas os pequenos resistiram. Ela ainda ministra aulas na comunidade Dona Cida, vizinha à Primavera.
Para Chica, o Muay Thai tem um impacto muito positivo na comunidade, agregando, principalmente, disciplina. “Eu sou bem chata. Eu brinco, tudo, mas eu sou ‘xarope’, se ‘zoar’ eu mando para fora do tatami. É assim que se aprende, e eles criam rotina”.
Naquele final de domingo ensolarado na Primavera, o Muay Thai aconteceu, excepcionalmente, no próprio campinho. Os adultos ainda papeavam, se recuperando do futebol. As crianças, que também haviam participado da partida, já estavam prontas para a próxima. Esbanjavam a capacidade de revigoração que só temos na infância.
Eu participei da aula, junto a quatro meninas e dois meninos. Os pequenos praticavam o esporte com leveza e, ao mesmo tempo, eram incisivos nos movimentos. Cada passo parecia, para eles, um verso de uma música decorada há tempos. Quanto a mim, estava tensa como me sinto diante de qualquer situação inédita.
O primeiro ato de Chica foi nos organizar em duas fileiras: os mais altos na frente dos menores. Ela mostrou, então, alguns passos iniciais que deveríamos fazer com as pernas. “É só relaxar e girar o quadril”, explica a professora. Um passo de cada vez, sempre para frente — instrução um tanto penosa para alguém acostumada com o caos de fazer tudo ao mesmo tempo. Percebi, também, que a coordenação motora era meu “calcanhar de Aquiles”.

Em seguida, Chica ensinou alguns movimentos com as mãos, como o jab direto. Subitamente, ela me chamou para praticar alguns passos em frente à turma e, por um instante, era como se eu tivesse oito anos novamente, na frente da sala de aula, tentando lembrar a tabuada. Sem a menor ideia do que fazer. Sentindo vários pares de olhos sobre mim.
Ela se posicionou em minha frente com as palmas da mão viradas para mim, para que eu praticasse o jab. A orientação era clara: golpear com uma das mãos e já retorná-la à posição inicial, para proteger meu rosto.
No primeiro golpe que eu dei, já levei uma advertência: Chica pediu para eu ajustar a posição dos meus polegares e “escondê-los”, ou eles poderiam quebrar. O cartão amarelo veio logo em seguida. Eu nem percebi, mas não parava de rir durante toda a prática (certamente, uma forma de mascarar o nervosismo). “Fique olhando para mim. E séria, não rindo”, pediu Chica.

Danem-se os livros de autoajuda, as falácias dos coaches e qualquer discurso motivacional vazio. Posso assegurar que nada traz mais autoconfiança do que ter uma Chica olhando fundo nos seus olhos e mandando você ajustar a postura. Ao mesmo tempo em que ela ensina com firmeza, ela não aterroriza. Ela impõe respeito, mas não medo. Chica tem características de uma líder nata, e assim fica fácil entender o porquê sua presença é tão magnética e ela fisga a atenção dos alunos com tanta naturalidade.
A próxima aluna que ela desafiou foi Valentina: uma menina de apenas cinco anos com olhos grandes e curiosos, que vestia uma camiseta com a frase “Eu acredito em pessoas boas”, em inglês. O semblante da garota estava sério, ao contrário do meu, e ela golpeava com energia, como se sua vida dependesse daquilo. Mesmo com a pouca idade, Valentina em nenhum momento era tratada por Chica como "café-com-leite".

“Valentina, você não está pulando. Lembre-se do seu treino!”, cobrou a professora. A menina acatava as palavras da mestre com a mesma seriedade de um corredor que se prepara para uma maratona. E pelo que conheci de Chica, ela trataria com o mesmo respeito uma criança de cinco anos e um atleta medalhista.
A luta de Chica consigo mesma
Quando a aula de Muay Thai chegou ao fim, o céu da Primavera já era preenchido totalmente por um azul soturno. Em um dos cantos do campinho, Chica me relatava mais detalhes sobre sua trajetória no esporte.
“Sempre gostei, na realidade. Parei um pouco pois tive problemas com drogas por muitos anos. Parei com o esporte, e depois voltei. Mas sempre gostei muito”, conta.
Chica se arrisca no futebol e gosta de jogar “bets”, mas não tem jeito: nada faz seus olhos castanho-escuros brilharem como o Muay Thai. “Eu sou mais ‘brutona’, e é por isso que eu gosto [do Muay Thai]”.
Segundo Sonelma, quem mais incentivou a implementação da arte marcial na Primavera foi a presidente da associação de moradores e líder da ocupação, Vanessa Rodrigues. Já o mestre de Chica foi o responsável por apontar a capacidade que ela tinha para ensinar o Muay Thai. “Por eu ser aluna, achava que não podia dar aulas. Aí meu mestre falou que eu estava apta e que tinha jeito para ser professora. Então, ele me nomeou e fez uma graduação comigo, para eu poder dar aulas”, explica.
É nítida a felicidade da professora pelos frutos colhidos na prática do esporte na comunidade. Mas a semente foi plantada cautelosamente. “Eu já queria esse projeto há muito tempo. Sempre quis dar aula para eles. Agora deu certo e tudo sai do meu bolso”.
Chica ainda declara que, para ela, o número de alunos que frequentam cada aula não é uma estatística importante. “Prefiro ter cinco, seis alunos, do que 50. Se só dois alunos vierem, esses dois vão fazer a diferença”, conta.

Chama atenção o fato de que, na Primavera, a turma administrada por Chica é composta majoritariamente por meninas. Pergunto o que o Muay Thai pode trazer de positivo para as mulheres, e ela toca na questão da defesa pessoal. Chica afirma que já indicou o esporte para muitas amigas que se encontravam em situações de violência doméstica.
“A mulher às vezes pensa que não tem mais força, mas se ela começa a fazer algum esporte, acha força não sei de onde. Eu acho que a ‘mulherada’ poderia fazer um pouquinho mais de atividade física, independente que seja um Muay Thai, Boxe, Kung Fu, Karatê… Ajuda muito, porque os homens vão pensar um pouco melhor antes de encostar o dedo nelas”, alega Chica.
O Muay Thai surgiu como um método de defesa usado pelos tailandeses para proteger o território contra invasores inimigos. Na Primavera, a arte marcial é útil para mulheres defenderem seus próprios corpos. É importante para que as meninas aprendam, desde pequenas, a se proteger de um mundo onde a violência contra elas é algo corriqueiro. Onde as agressões são comentadas em mesas de bares e no campinho de futebol, como algo comum. “Você viu quem passou por aqui com o olho roxo?”
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