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Cabelos presos, risadas soltas

  • Bruna Colmann
  • 2 de nov. de 2022
  • 8 min de leitura

Por Bruna Colmann


Em alguns domingos do mês, as mulheres da ocupação Primavera se reúnem para jogar futebol | Foto: Isadora Deip

Apesar de não ser nenhum tipo de craque ou grande revelação no futebol, sempre gostei mais de jogar do que de acompanhar a classificação dos times pela televisão. Meu leque de experiências com a bola nos pés se resume basicamente às brincadeiras de gol a gol com meus primos na infância, aos poucos jogos em um time de futsal que eu fazia parte em 2017 e a aproximadamente umas 5 partidas de futebol de campo entre colégios na época do ensino médio. Já joguei em pisos amadeirados, cimentados, na grama e no asfalto da rua esburacada da antiga casa da minha avó, mas, na areia fofa misturada com lama, foi a primeira vez.


Carregando essa bagagem nas costas, como uma mochileira que estava prestes a desbravar um novo lugar, cheguei ao campinho de futebol que fica quase na entrada da Ocupação Nova Primavera, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC). Na primeira vez que fui à comunidade, eu estava em um carro de motorista de aplicativo. Eu sabia que o campinho de futebol era um dos pontos de referência e de localização para a entrada na Primavera, mas, de imediato, não o identifiquei. Consequentemente, não consegui ajudar o motorista, que já estava com rugas de preocupação na testa, em uma manifestação levemente silenciosa e particular com seu GPS. Eu não tinha percebido, até as moradoras me mostrarem, posteriormente, que aquele espaço retangular cercado por alguns arames e pallets de madeira, ao lado da grande indústria que se instalou na região, era o tão famoso campinho. As traves do gol passaram despercebidas pelos meus olhos, que também foram prejudicados e embaçados pelos estereótipos de campo de futebol que criei.


Era um domingo ensolarado, e isso, por si só, já representava um grande evento em Curitiba, que leva a fama de “Chuvitiba” por ser uma cidade chuvosa. O dia estava perfeito para uma boa partida de futebol com as amigas. Bianca Fernanda, que mora na ocupação Primavera, é a responsável por reunir o time. Desde o começo da semana, já manda mensagens no grupo de WhatsApp convocando as mulheres.


Por volta de 17h30, as jogadoras começam a aparecer. A maioria já chegava uniformizada e acompanhada de seus filhos e marido – ou apenas filhos, em alguns casos. O look era uma camiseta de manga longa e um calção, ambos em um tom forte de azul anil. “Quem arranjou essas roupas para a gente foi o Márcio [marido de uma das mulheres que fica na torcida]. Não sei de onde ele conseguiu isso”, comenta Bianca enquanto procura, sem sucesso, um uniforme para mim. O estoque tinha acabado, então continuei com a minha regata marrom e calça legging preta.


A torcida fica sentada em um barranco, no lado esquerdo do campinho de futebol | Foto: Isadora Deip

Aos poucos, mais jogadoras foram chegando. A torcida – composta apenas por mulheres, até então, – crescia em uma proporção um pouco maior que a do time. A conversa começou antes do jogo. Algumas atualizações sobre a vizinhança. Uma das pautas foi a mulher que elas viram passando pelas ruas da Primavera, ela estava com um olho roxo – tinha apanhado do marido. A indignação entre o grupo, não foi tão grande, infelizmente essa situação parece comum e frequente por ali. Uma das mulheres até comentou na roda que “Sim, homem bate em mulher, mas se a mulher reagir, ele perde a coragem de bater”. Todas concordaram. Também assenti com a cabeça.


Sheila Moraes, de 32 anos, era uma das mulheres da roda de conversa. Ela estava sentada em um barranco no canto esquerdo do campinho de futebol, juntamente às outras torcedoras. Batia papo com as amigas enquanto amamentava Cecília, sua caçula. Quando perguntei quantos filhos ela tinha, a resposta foi 4, e eu, naturalmente e totalmente sem querer e nem perceber, disse um rápido “nossa”, e logo emendei minha fala em uma outra pergunta.


Sheila e Cecília iluminadas pelo sol, enquanto acompanham o jogo | Foto: Isadora Deip

Eu não tinha reparado no meu “nossa”, mas ela e as outras mulheres repararam, e imediatamente começaram a rir. “Gi, escute aqui, a Sheila falou que tem 4 filhos e a Bruna falou ‘nossa’”, disse uma das torcedoras, em meio às risadas intensas. Quando me dei conta da gafe que tinha acabado de cometer, fiquei preocupada. Minha mente pensou em zilhões de coisas ao mesmo tempo, e a culpa por ter deixado escapar das minhas cordas vocais aquele “nossa” me fez franzir a testa, da mesma forma que o motorista de aplicativo que me levou à Primavera pela primeira vez franziu.


Minha preocupação foi se diluindo aos poucos, conforme elas riam e tiravam sarro da situação, falando que 3 filhos “até vai”, mas 4 é realmente um “nossa”. Ufa! Naquele momento, me senti como uma antiga amiga delas, que poderia apenas relaxar e olhar a vida de uma forma mais leve. Ao invés de travar completamente, consegui até me soltar um pouco mais. A conversa pré-jogo foi muito divertida, mas já estava na hora de entrar em campo.



Sem coordenação nem sintonia


Dentro do campinho de futebol, as mulheres da Primavera se permitem rir sem amarras | Foto: Isadora Deip


De cabelos amarrados, com chuteira e meião nos pés, Sonelma Stoll, conhecida popularmente como Chica, é a esportista do grupo. Enquanto a turma do bate-papo dava risada, ela fazia uma limpeza geral no espaço, catando os lixos espalhados, tirando as madeiras jogadas pelo chão e deixando o campinho mais ‘jogável’. As amigas reclamavam dos chutes fortes potencializados pela chuteira de Chica, e ela aproveitava a ocasião para brincar: “Ah, tá bom… Então comprei minha chuteira e meu meião para enfeite? Gente, eu preciso usar!”. Logo depois da fala, ela começou a tirar a chuteira e o meião, para jogar futebol descalço, igual as outras jogadoras. Também comecei a tirar meu tênis e minhas meias.


Pisar no chão de barro misturado com a areia fofa e úmida da Primavera foi muito mais agradável do que eu imaginava. Enquanto meus pés estavam recebendo o carinho daquele chão afofado, escutei alguém falando que os times já estavam prontos, o jogo poderia começar. De um lado, as mulheres (fui integrada à essa equipe), do outro, alguns meninos de idades entre 10 e 13 anos. Não havia tantas mulheres assim para a formação de dois times femininos, então, essa foi a alternativa.


Chica estava no nosso gol. O restante do time não tinha nenhuma posição definida – nem coordenação, nem sintonia. O apito inicial foi o assovio do Márcio, o cara dos uniformes, que estava do outro lado da rua e escutou um grito da esposa, na torcida, que dizia: “Márcio, apita aí, vai começar!”. E começou. O primeiro gol não demorou muito para acontecer, foi de um dos meninos, na Chica. Até esse momento, eu nem sequer tinha colocado os pés na bola. Na verdade eu não tinha feito nada a não ser correr de um lado para o outro escutando vozes de todas as direções possíveis: da torcida, da goleira, das jogadoras e da minha mãe, que foi comigo ao jogo e ficou no canto direito do campo gritando, entre risos e decepções, frases marcantes como “Bruna, pelo amor de Deus jogue direito, faça alguma coisa!”.


A situação estava tão desanimadora, que até o cachorrinho de pelagem preta e branca que estava zanzando pelas ruas da Primavera escolheu o nosso lado do campo para deitar e tirar um cochilo. Antes do segundo gol dos meninos, que também não demorou muito para acontecer, eu finalmente tinha conseguido tocar na bola – mas acabei chutando na direção de uma das mulheres do meu próprio time. Um desastre! Ainda bem que depois ela aceitou minhas sinceras desculpas pelo chute.


Naquele momento, me dei conta do quão ruim eu era no futebol. Eu realmente pensava que era boa, não ótima, mas boa. Acho que enferrujei minhas “engrenagens futebolísticas” depois de ficar tanto tempo sem jogar. Mas não tinha problema, ali tudo era motivo de risada. Eu não parei de sorrir em nenhum momento, e era um daqueles sorrisos que não demandava nenhum tipo de esforço, apenas aparecia, como se fosse um elemento inerente ao rosto.


Chica se protege do sol, ao mesmo tempo em que protege o gol | Foto: Isadora Deip

A bola de futebol ficava mais tempo fora do campo do que dentro, porque os chutes a arremessavam para longe. Os meninos, que tinham uma energia imensa, saiam correndo para buscar a bola e continuar o jogo, como se aquela fosse a missão deles para salvar a humanidade. Muitas e muitas vezes a bola caia na rua. Os carros que estavam passando por ali tentavam desviar, enquanto as crianças corriam sem olhar para os lados, deixando as mães aflitas e preocupadas. Mas elas não ligavam. Estavam ali para jogar com os adultos, e nada poderia atrapalhar esse dia.


Quando os pequenos começaram a ir muito bem, decidimos usar a nossa “carta na manga”, e a Chica entrou em campo. Logo me ofereci para ir no gol, porque precisávamos da nossa craque e, além disso, eu já estava exausta e sem fôlego para correr. O gol era definitivamente a minha chance de ajudar o time.


Como goleira, meu ouvido direito escutava o vai e vem dos carros que passavam pela rua, unidos aos gritos e broncas da minha mãe; enquanto meu ouvido esquerdo recepcionava os zunidos de risadas e conversas fervorosas da torcida. Ouvi de uma das torcedoras, inclusive, um dos melhores comentários possíveis: “A Bruna é melhor no gol!”. Ufa! Então é aqui mesmo que vou ficar – pensei.


Depois de muito tempo, fizemos nosso primeiro gol. Na verdade, acho que foi o único gol do time. Ninguém estava contabilizando os pontos, mas era evidente que estávamos perdendo – e perdendo de lavada. O gol foi da Chica, e eu, como goleira, joguei a bola para ela. No momento da jogada, senti que machuquei alguma parte do meu ombro, que deve ter se assustado com um movimento nunca feito antes. Mas valeu a pena, fizemos nosso gol! A comemoração foi incrível, cada uma deu um grito do lugar que estava. Eu ergui meus braços e dei pulinhos, ali do gol mesmo.


Um reflexo da sociedade



O jogo teve uma pausa depois que uma das jogadoras chutou a bola para dentro da indústria, que fica ao lado do campinho. Por sorte, um guarda estava lá e arremessou novamente duas bolas – uma que tinha acabado de cair e outra, que sabe-se lá desde quando estava ali. No momento da pausa, a configuração dos times mudou. Mais gente tinha entrado e algumas pessoas saíram também.


Antes de voltar a jogar, Chica falou para mudarmos o lado do campo. Eu estava indo para o outro gol, quando vi um menino de aproximadamente 11 anos já posicionado lá. Ele me falou que queria muito ser goleiro, então falei que tudo bem, e voltei para o campo. Ao olhar para os times, percebi que, de repente, o jogo estava com mais homens do que mulheres. Alguns dos homens que estavam na torcida aproveitaram a pausa para entrar, enquanto umas três jogadoras do meu time saíram para descansar. Parecia quase que um reflexo de tantos outros ambientes na sociedade. Algo que é delas, feito para elas e só com elas, sem perceber, vai sendo ocupado por eles. E foi tão natural, acho que ninguém se deu conta. O futebol de domingo com as amigas, se transformou no futebol de quem quisesse jogar. As mulheres continuaram por perto, mas agora conversando mais do que jogando.


Entre afazeres, carrinhos de bebês e unhas pintadas, as mulheres da Primavera também amam dar risadas | Foto: Isadora Deip

Depois de um tempo, também saí do campo, o cansaço físico me abraçou. Minha mente só queria emoldurar aquele momento bom em uma parede pintada com todas cores, para ter certeza de que ele jamais seria esquecido. Ver aquelas mulheres que, de segunda a sexta não se permitem “sair do eixo”, com a risada frouxa, foi uma das coisas mais lindas que já vi. Era como se o futebol conseguisse reunir todas elas. E como se todas elas reunissem suas bagagens de vida, filhos e maridos para jogar. Para torcer. Para viver.


Bem que elas tinham me falado: “no futebol dá para esquecer os problemas”. Esse é um dos poucos momentos de lazer das mulheres daquela comunidade. Acontece em um domingo ou outro do mês. Acontece quando dá. O número de gols dos times é apenas um detalhe, porque ali o jogo é outro. A torcida, as risadas e as pessoas fazem o clima ficar tão leve, que a única preocupação existente e possível é a de tentar não deixar com que uma criança de 11 anos ganhe “de lavada” do seu time. Mas, se ganhar, tudo bem. Essa realmente não é uma prioridade para elas: as geradoras de vidas e de sorrisos da ocupação Nova Primavera.


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