Uma vida de flores e espinhos
- Bruna Colmann
- 2 de nov. de 2022
- 6 min de leitura
Por Bruna Colmann

Os olhos castanhos – enfeitados com um delineado preto no estilo gatinho – e o sorriso singelo – que aparece em momentos pontuais como se fosse uma janela que se abre entre as bochechas arredondadas –, representam o início de uma boa conversa com a Vanessa Rodrigues, presidente da associação de moradores e líder da ocupação Nova Primavera, localizada na Cidade Industrial de Curitiba (CIC).
As sardas que se espalham pelo rosto da mulher, no auge de seus 37 anos, são como as estrelas, distribuídas pelo céu que adorava apreciar com os amigos na infância – época em que ainda era permitido misturar os problemas com as brincadeiras.
Caçula de 4 irmãs, Vanessa é considerada a “ovelha negra” da família. Aos 6 anos, foi abusada pelo próprio primo, aos 17, começou a beber e, aos 23, perdeu a mãe. O pai ocupou, e ainda ocupa, um papel marcante em sua vida, adicionando mágoa, amor, raiva e compaixão ao enredo. Ele sempre foi “dono de bar” e, seguindo o estereótipo de um dono de bar da novela das 20h, também era violento e vivia cercado por homens que importunavam ela e as irmãs.
Antes, o alvo da violência era a mãe. Depois, passou a ser a Vanessa, que morou sozinha com o pai por algum tempo. Chegar e ver a luz acesa na sala de estar era como um sinal de alerta para não entrar em casa. Com isso, aos poucos, as ruas, as bebidas e as drogas foram se tornando seu novo lar.

Lar que logo se transformou em gente, quando começou a namorar Márcio Rodrigues, seu primeiro e grande amor. Ele era da vizinhança e conhecia a história dela. Inclusive, a viu nascer, por ser um pouco mais velho. Casado e apaixonado por Vanessa há 12 anos, não pensou duas vezes em ir junto quando ela disse que sairia da casa do pai, aos 24.
O plano era morar com uma amiga, e o pai já tinha avisado que, se ela saísse, não poderia mais voltar. E ela foi. Márcio foi junto, e mudou a rota, ajudando-a a construir um caminho diferente. O namoro tinha dois meses quando tudo aconteceu. “A gente se conheceu morando junto”, comenta Vanessa.
Para Márcio, que tem o contato da esposa salvo no celular como ‘Amor da Vida’, Vanessa representa muita coisa. Representa tudo, na verdade. Ela o ajudou a sair do mundo das drogas e das bebidas, o presenteou com dois filhos lindos e é sua parceira de todas as horas.
“Ela é meu ‘pulmão’. É realmente muito importante para mim”.
(Re) começando juntos

Quando Vanessa e Márcio saíram de casa, foram morar juntos na Vila Sandra, em um imóvel de 3 peças. Depois de algumas mudanças, e já com os filhos no colo, as dificuldades financeiras estavam batendo à porta cada vez mais rápido – enquanto a esperança de receber qualquer tipo de ajuda do pai ou de algum outro familiar foi ficando cada vez mais distante.
Ir ao mercado, sentir o cheirinho do pão e não ter dinheiro para comprá-lo foi uma das dores que marcou essa fase difícil, causando lágrimas de lembranças tristes, que escorrem pelo rosto até hoje.
Em um dia qualquer, navegando pelo Facebook – utilizando o wi-fi que a vizinha de baixo emprestava –, Vanessa leu o anúncio: ‘Vendo terreno e troco por moto ou carro’. Naquele momento, ela e o marido, por coincidência, ou não, tinham um Monza velho e uma moto. Aquela era a oportunidade. Ela logo falou para o esposo ir ver o terreno, que ficava em uma esquina, na comunidade Nova Primavera.
A casa onde estavam morando ficava perto de uma rua inclinada. Pela porta, Vanessa viu o marido descer andando e dando risada, acompanhado por um carro que estava atrás. Esse era o sinal que ela precisava. Era o sinal de um recomeço. A venda deu certo. O comprador cobrou R$ 12 mil pelo terreno – comprou o Monza por R$ 6 mil e pegou mais R$ 6 mil de permuta em serviços de pedreiro do Márcio.

E ali, em 2017, foi plantada a semente do casal na Ocupação Primavera. Apesar da frase bonita, o começo da história na comunidade não teve apenas flores. A família foi muito mal recebida pelos vizinhos. Tiveram, inclusive, um desentendimento com a senhora que morava ao lado por causa de uma obra dela, que estava invadindo o espaço deles.
A confusão foi tanta que a vizinha fez uma reclamação para os traficantes da região, que foram tirar satisfação com Márcio, e queriam o agredir. Diante da situação, Vanessa ligou para o antigo dono do terreno, para pedir ajuda. Ela não sabia, mas ele era um dos comandantes do tráfico local, e prometeu que nada aconteceria com eles.
No dia seguinte, Tiago, um dos líderes do tráfico, bateu à porta. “Educado, ele tirou o tênis para entrar na minha casa, pediu licença. Coisas que talvez outra pessoa não faria.”, comenta Vanessa. O gesto do homem, que depois se tornou um amigo da família, representou um pedido de desculpas e, ao mesmo tempo, o ingresso de Vanessa e Márcio na coordenação da comunidade Nova Primavera. Os gestores estavam vendo o trabalho que o casal fazia na rua e na reforma da própria casa, achavam que eles eram pessoas bem “pra frente”.
Os dois, então, assumiram a responsabilidade, que veio junto à muita dor de cabeça e reclamações de moradores. Depois de um tempo, decidiram abandonar o cargo – estavam esperando apenas o amigo, Tiago, que estava preso, sair da cadeia. Ele foi solto na sexta e, no domingo, morreu de “morte matada”.
A dor pela perda foi grande, e se tornou imediatamente uma das lembranças mais tristes que a família viveu na Primavera. Infelizmente, essa não foi a única morte encomendada que aconteceu ali. A lista violenta tem alguns nomes, e cresce de forma equivalente à tristeza de quem fica.
Com um aperto no peito, Vanessa e Márcio deixaram a coordenação da comunidade. Outro traficante assumiu a liderança no lugar de Tiago, e tudo ficou um pouco diferente por ali. Márcio continuou com os serviços de pedreiro e Vanessa, apesar de ter saído da liderança, nunca deixou a liderança sair dela. Doações e auxílios continuavam chegando à sua casa, que se tornou um ponto de encontro e distribuição.
Ainda existe algo bonito por ali

Certo dia, colocaram uma placa de reintegração de posse na ocupação Primavera. Vanessa logo foi atrás. Em 15 dias, ela conseguiu emitir o CNPJ da comunidade e regularizar a situação. Com isso, surgiu novamente o convite para ser a presidente da Associação de Moradores – mas apenas a presidente, e ponto. Até que outra morte assolou a comunidade, afetando a coordenação, que ficou sem ninguém. Vanessa estava sempre por perto e, quase que naturalmente, se viu de novo como líder da região. Parecia que aquilo ali era para ela, não tinha jeito.
Os filhos, a casa, os sonhos e o marido acabam ficando um pouco para trás. As demandas da Primavera ocupam a maior parte do tempo, mas não todo. Domingo é o dia oficial do descanso e do churrasquinho com o Márcio. Ver séries e ficar em casa sempre que sobra um tempinho é o que ela ama fazer.
Apesar de ter causado espinhos, a Primavera também trouxe flores para a vida de Vanessa. A amizade com a Bianca Fernanda é um exemplo disso. As duas se conheceram porque Bianca precisava comprar manilhas e, por acaso, a futura amiga tinha os contatos necessários para ajudar. “A partir disso, começamos a conversar. Somos bem unidas, nos apegamos bastante. Um tempo depois, nos batizamos e também cantávamos juntas no grupo de louvor da igreja.”, comenta Bianca, que atualmente trabalha com a Vanessa na coordenação da comunidade.
A fé e a igreja, mencionada por Bianca, pode ser encontrada em detalhes ditos em algumas das frases da amiga, como “isso foi coisa de Deus”. Também é possível identificar sua fé por meio de seus sorrisos envergonhados e de uma voz que fica mais fina ao falar, por exemplo, que “Márcio parou de beber quando conheceu Jesus”. Um dos sonhos do casal, inclusive, além de ter mais um filho e de terminar de construir a casa, é ter a igreja ali no terreno. Ter a fé no quintal. Quintal que já viu tanta coisa e que já recebeu tanta gente.

Pela janela do segundo andar do sobrado, Vanessa conversa com seus pensamentos e não nega que às vezes tem vontade de largar tudo e ir embora com a família. Mas algo na Primavera a faz ficar. Talvez seja o acolhimento que a vida não a deu, ou o plano para um futuro que nem imaginava ter,
Eu nunca tive uma expectativa de vida. Acho que a vida que eu vivi nunca me deu tempo para sonhar ou para querer ser alguma coisa”.
Agora, a mulher, mãe, esposa, presidente da Associação de Moradores e líder da ocupação Nova Primavera se permite sonhar um pouquinho. Talvez seja porque percebeu que ali, mesmo com tempestades barulhentas e com ventos fortes que balançam as folhas de sua árvore, ela já criou raízes fortes e profundas, que apenas as famílias têm e, para ela, apesar de tudo, a Primavera é uma família.
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