As flores mais coloridas: mulheres LGBTQIA+ encontram acolhimento na Primavera
- arevistamarias
- 2 de nov. de 2022
- 6 min de leitura
Por Isadora Deip e Sabrina Ramos

No meio do céu primaveril, nasce um arco-íris. Cores diferentes, mulheres distintas, mas todas resistentes. Sentem-se acolhidas na Primavera, abraçadas, ao contrário do que o senso comum poderia imaginar.
Jucimara Aparecida Alves, de 46 anos, mora desde 2019 na ocupação Nova Primavera, localizada na Cidade Industrial de Curitiba (CIC). Antes de se mudar para o local, ela residia na ocupação 29 de Março, vizinha da comunidade atual. Mara, como é conhecida pela vizinhança, morou por cinco anos na 29 de Março e saiu de lá devido a um incêndio que destruiu mais de 200 casas da ocupação, inclusive a sua.
Na Primavera, Mara renasceu e floresceu. Se pudesse definir em uma palavra o que a comunidade representa em sua vida, usaria “sonho”. “Foi ali onde realizei meu desejo de ter uma casa própria, de construir minha ‘casinha’. Meus sonhos estão todos depositados na Primavera e ela me deu a oportunidade de estar mais perto da minha família, de ter conforto e esperança de um futuro melhor”, explica. Ela destaca, ainda, que está reconstruindo a vida na ocupação e recomeçou “do zero” ali, após dois divórcios turbulentos.

A experiência de ser uma mulher LGBTQIA+ na comunidade Primavera, para Mara, é positiva. De acordo com ela, os moradores sempre estão dispostos a ajudá-la e ela foi amparada, principalmente, durante a construção de seu lar.
“Sou muito bem-quista aqui, tenho bastante reconhecimento e várias amizades. Quando eu comprei meu terreno ele era bem ‘pequenininho’, e eles [moradores] conseguiram ajeitar para me deixar em um espaço maior e melhor”, relata.
Mara declara que nunca foi vítima de preconceito dentro da comunidade. “Eu posso dizer que sou bem querida aqui e eles nunca me deixam de fora, sabe? É muito bom, muito bom mesmo”. Ela conta que é sempre incluída nos eventos e entregas de doações, como cestas básicas.
Na comunidade onde habitava antes, a 29 de Março, Mara também não foi alvo de lgbtfobia. “Eu sempre fui uma pessoa de fazer muitas amizades. Onde você for aqui [na comunidade] e perguntar da Mara, todo mundo me conhece e sempre me tratam super bem, sabe?”
Em Curitiba, o Coletivo Cássia é uma entidade que atua promovendo espaços de acolhimento e entretenimento para mulheres lésbicas na cidade. Criado em 2017 por ativistas do movimento, o Coletivo recebe mulheres que habitam as periferias da capital e região metropolitana em busca de algum tipo de auxílio. Entre as principais demandas listadas pela coordenadora do Coletivo Laira Rocha Tenca, estão apoio jurídico, saúde mental e atividade de lazer e debate.
Em relação ao acolhimento das mulheres na ocupação, a coordenadora do Coletivo e cientista política Laira Rocha Tenca explica que as ocupações são um complexo movimento político de luta pelos direitos humanos de todos os seus habitantes, e não apenas pelo acesso à moradia. Ou seja, há um processo de desconstrução em curso que viabiliza espaços para mulheres. “As periferias possuem tantas violências quanto às regiões centrais, não há lugar mais ou menos violento para mulheres lésbicas nesse sentido. Mas, em espaços com organização política e reflexão pautada em respeito aos Direitos Humanos, mulheres que amam mulheres se sentirão mais seguras para viver.”
Outro ponto destacado pela cientista política sobre as mulheres que habitam as periferias é a dificuldade de acesso aos direitos e ao próprio Coletivo — as ações do grupo são localizadas no Centro de Curitiba, muitas vezes, um espaço inacessível para as mulheres que estão em situação mais vulnerável. “O mesmo contexto se repete quando a instituição que irá auxiliá-las é o Estado. Por mais que tenhamos instituições importantes como a Defensoria Pública e outras políticas de garantia de direitos humanos, a vulnerabilidade econômica das mulheres da periferia é um obstáculo gigantesco para o exercício de sua cidadania. Como é possível denunciar um agressor se você não possui dinheiro para pegar o ônibus e ir até a delegacia? Essa é a realidade de muitas mulheres na periferia”, comenta.
Micro-violências despercebidas
O processo de autoaceitação como uma mulher lésbica, para Mara, começou aos 20 anos de idade. Ela foi casada com um homem, pai de sua filha, por quatro anos. “Eu sentia que tinha algo diferente comigo, mas não conseguia identificar bem o que era. Aí conheci uma pessoa, uma mulher, e a gente começou a se gostar e acabou ficando junto”, relata. Mara separou-se do marido, mas o homem não aceitava o divórcio e tampouco a família dela.
A psicóloga Jamile Nascimento explica que a sexualidade é uma área importante para o desenvolvimento psíquico humano. Influenciada por fatores históricos, sociais, culturais, políticos, econômicos e de gênero, a descoberta é um processo fluido e que leva tempo. “Não há um padrão e não há um certo ou errado. Socialmente, é nosso dever educar crianças e adolescentes sobre seus corpos, seus afetos e seus limites. As descobertas vão acontecer de acordo com os desejos e interesses pessoais, com a cultura, com o acesso às informações e oportunidades que surgirem na vida de cada pessoa”.
Durante o processo de descoberta, Mara sofreu com o preconceito de sua família. “Nós éramos cinco irmãos, três homens e duas mulheres, e nenhum deles me aceitava. Meu pai também não. Aí acabou sendo muito difícil. Até eles me aceitarem eu fiquei cinco anos sem ter contato com a minha família. Eles acabaram me aceitando aos poucos”.
Hoje, seu pai é falecido e a mãe se arrepende de todos os anos em que passaram distantes. Ela é bem aceita pelos familiares, inclusive pelos irmãos, e deu origem à sua própria família: além da filha, três netos, que moram na comunidade Dona Cida, vizinha à Primavera.
Há três anos, Mara pediu divórcio de outro casamento. Separou-se de um relacionamento de dez anos com uma mulher, logo antes do incêndio que fez com que ela se mudasse para a Primavera, enquanto a ex-esposa seguiu morando na 29 de Março. Mara comenta que elas ainda mantêm o vínculo de amizade e até “namoram” de vez em quando, mas sem o compromisso intrínseco a um casamento.
Mara trabalha há três anos como auxiliar de cozinha no Hospital da Cruz Vermelha, no Centro de Curitiba. No emprego atual, ela também é bem aceita como mulher LGBTQIA+. “Há uns anos havia mais preconceito nos trabalhos, e até para conseguir um emprego era mais difícil. Até para andar na rua. Hoje, a sociedade já tem uma visão mais aberta, né?”
Diene Suzane Ferreira Pacheco, de 31 anos, também vive diariamente a experiência de ser uma mulher LGBTQIA+ na comunidade Primavera, onde mora há 10 anos. “Sempre tive o sonho de ter o que é meu e fui na luta”, conta, sobre a mudança para a ocupação.
Assim como Mara, Diene relata que nunca sofreu lgbtfobia no local. Pelo contrário, os demais moradores sempre a deram suporte.
“Achei que seria mais difícil, só que todos me aceitaram e apoiaram. Sem problema nenhum”.
Apesar das mulheres relatarem acolhimento, a psicóloga alerta para possíveis micro-violências que passam despercebidas, devido a naturalização da violência que a população LGBTQIA+ enfrenta, como o silenciamento das violações que sofrem no cotidiano. No entanto, Jamile ressalta que é fundamental conhecer o contexto e a individualidade de cada um para estabelecer uma análise efetiva da situação.
Lgbtfobia é crime.
Além das micro-violências no dia a dia, a lgbtfobia é uma constante para a população. A lgbtfobia é o nome dado às agressões contra pessoas da comunidade, sejam elas de natureza verbal, psicológica, sexual, física, moral; e entre alguns dos impactos para as vítimas: inseguranças, sentimento de inadequação, ansiedade e depressão. Sobre isso, a psicóloga ressalta que a falta de informação e conhecimento sobre educação sexual, gênero e sexualidade são as raízes do preconceito. “Nos últimos anos e no atual governo vivemos um retrocesso das políticas públicas e de educação que nos atrasaram muito em relação a lidar com a lgbtfobia. Além disso, há pessoas que expressam suas ideias e valores a partir da violência e agressividade, pautadas no preconceito. Esse é um problema social e não individual”.
Para as advogadas Isabel Ceccon e Marina da Silva, embora haja avanços nos direitos, como a própria criminalização da lgbtfobia, o reconhecimento da união estável e casamento civil de pessoas do mesmo sexo (Resolução nº 175, do CNJ), a adoção de crianças por casais homoafetivos, sem restrição de idade (decisão do RE 846.102), o cenário jurídico para a população LGBTQIA+ é “frágil”. “Não há nenhuma legislação federal que prevê expressamente direitos para a população LGBTQIA+, sendo estes conquistados pela via do Poder Judiciário. Casos tão importantes para a comunidade são dependentes de decisões de juízes, desembargadores e ministros, que nem sempre são sensíveis, ou mesmo capacitados, para julgar. Por isso, os direitos LGBTQIA+ são corriqueiramente desrespeitados, impondo barreiras a sua consolidação.”
Como saída para melhorar o cenário, as advogadas destacam a importância de exercer a cidadania e o voto consciente em pessoas comprometidas com a pauta, pois os parlamentares do Poder Legislativo são os responsáveis pela elaboração das leis. Além disso, a mobilização de movimentos sociais é um fator determinante para fiscalização, luta e garantia dos direitos para as pessoas marginalizadas.
Para denúncias e atendimentos, as vítimas podem buscar qualquer delegacia, Disque 100 — serviço de denúncia de violações aos Direitos Humanos e difusão de informações sobre o tema —, Central de Atendimento à Mulher — serviço de proteção e apoio de mulheres em situação de vulnerabilidade, telefone 180 —, Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e Defensorias Públicas.
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